JOSÉ CARDEAL-PATRIARCA DA CRUZ POLICARPO
"A PÁSCOA DA EUCARISTIA"

NOTA PASTORAL A QUARESMA DE 2005

22 de Janeiro de 2005

 

Introduçao

1. Aproxima-se a Quaresma de 2005, que é, na realidade, o início da celebraçao anual da Páscoa, e esta é a expressao máxima da vitalidade e da coerencia da Igreja. Há muitas razoes para que a Páscoa deste ano seja especial: o Ano da Eucaristia, a preparaçao do Congresso Internacional da Nova Evangelizaçao, o desafio, cada vez mais exigente, a que os cristaos deem testemunho da sua fé no seio da sociedade em que estao inseridos, mostrando que a fé em Jesus Cristo fundamenta a esperança e define critérios e ordens de valores na construçao da cidade.

O título desta "Nota Pastoral" é, de certo modo, pleonástico. De facto a Eucaristia é sempre a celebraçao da Páscoa pelas comunidades cristas, ao ritmo semanal e anual, e desde a Páscoa de Jesus Cristo, em memória da qual a Igreja celebra a Páscoa, esta é profundamente eucarística, porque momento de oferta sacrificial e de louvor, e constrói a Igreja como mistério de comunhao, anunciada e significada no sinal do banquete e da fracçao do Pao. É esta dimensao eucarística de toda a oferta e louvor cristaos, que engloba toda a vida, que o Ano da Eucaristia vem acentuar. Foi nessa perspectiva que o Santo Padre proclamou o "Ano da Eucaristia": "Nao peço para se interromperem os caminhos pastorais que as diversas Igrejas estao a fazer, mas para neles dar relevo a dimensao eucarística própria de toda a vida crista" .

A descoberta e valorizaçao da dimensao eucarística, deve exprimir-se em todas as expressoes da vida crista: a qualidade litúrgica das celebraçoes, o ardor da evangelizaçao, a generosidade moral que nos leva a exprimir nos comportamentos a novidade surpreendente da Páscoa, o sentido profundo da construçao da história que marca e inspira a maneira de os cristaos estarem no mundo e se comprometerem na construçao da sociedade. Nao poderei desenvolver todos estes aspectos, no espaço necessariamente reduzido de uma "Nota Pastoral". Fique claro que o facto de nao os referir nao pode ser interpretado como se os considerasse menos importantes. Terei oportunidade, sobretudo nas "Catequeses Quaresmais" que, como vem sendo hábito, proferirei na Sé Patriarcal todos os domingos da Quaresma, de aprofundar algumas dessas dimensoes. Aqui, na coerencia com a preparaçao da Igreja de Lisboa para a "Missao na Cidade", acentuarei, de modo especial, a dimensao eucarística da presença da Igreja na sociedade e do testemunho que os cristaos aí sao chamados a dar, em todas as suas lutas por um mundo melhor, da luz e da esperança que para eles brilha na celebraçao da Eucaristia. Situar-me-ei no âmbito daquilo a que poderíamos chamar uma "cultura da Eucaristia".

Uma visao cristocentrica da História

2. Um aspecto fundamental da cultura é a definiçao de um sentido da história. Esse sentido enquadra e inspira opçoes e acçoes, de pessoas e de instituiçoes, na busca da valorizaçao da pessoa humana e do progresso da sociedade. Há respostas a questoes fundamentais — para onde caminha a humanidade, em que consiste a plena realizaçao da pessoa humana, quais sao as exigencias da liberdade e da fraternidade, como se garante a justiça e se caminha para a paz — a que só a cultura pode dar resposta. E os cristaos nao descobrirao esse "sentido da história" se, em cada Eucaristia nao reviverem esse acontecimento decisivo para a história da humanidade, que foi Jesus Cristo e a sua Páscoa. Escreveu o Santo Padre: "Cristo está no centro nao só da história da Igreja, mas também da história da Humanidade. Tudo é recapitulado n'Ele (Efs. 1,10; Col. 1,15-20) [...] Cristo é o fim da história humana, o ponto para onde tendem os desejos da história e da civilizaçao, o centro do género humano, a alegria de todos os coraçoes e a plenitude das suas aspiraçoes".

Esta visao cristocentrica e eucarística da história nao retira nada ao realismo e a complexidade da realidade humana contemporânea. Dá-lhe um sentido de profundidade radical, porque os cristaos aprendem na Eucaristia que nao se pode desligar a construçao da sociedade presente da cidade definitiva, a "Jerusalém Celeste", em que brilhará a plena e definitiva dimensao do triunfo pascal de Jesus Cristo. A liberdade torna-se força de generosidade e de criatividade, o amor aparece como a única atitude que pode construir a fraternidade, a justiça, a afirmaçao indiscutível da dignidade de cada pessoa. De cada Eucaristia os cristaos partem com um entusiasmo renovado para lutar por um mundo novo e aprendem a oferecer, na próxima celebraçao, as suas lutas e esforços, as suas esperanças e utopias, a sua coragem para dar as maos a todos os que buscam o bem, e aí encontram força para as dificuldades, hesitaçoes e fragilidades. A construçao de uma civilizaçao do amor só pode partir da Eucaristia. Nela encontramos Cristo vivo e sentimos que Ele assume e faz suas todas as lutas da humanidade.

Mas há outras visoes da História

3. Nós os católicos nao podemos exigir que este sentido cristocentrico e eucarístico da história humana seja seguido por todos os homens. Há outras culturas a inspirar o sentido da actividade humana. As principais, porque mais numerosas, que hoje influenciam a construçao da história, sao as que enraízam noutras grandes religioes, em que a unidade entre a visao religiosa e o sentido ético de toda a existencia humana sao explícitas. Embora reconhecendo o seu peso de influencia no momento presente da vida da humanidade, nao as referirei agora explicitamente, porque elas nao sao a alternativa principal a visao crista da sociedade, no contexto cultural do Ocidente em que nos situamos. Aqui, a visao do mundo que se contrapoe a uma cultura de matriz crista, em que a fé em Jesus Cristo, revitalizada continuamente na Eucaristia, é fonte inspiradora do sentido de toda a vida humana, sao os diversos racionalismos naturalistas, baseados na exclusividade da razao como fonte da verdade, no carácter absoluto da liberdade individual, considerada como fonte principal do sentido ético e da moralidade, e os pragmatismos de uma sociedade materialista, em que só tem valor o que é útil, rentável, ou dá prazer.

A convivencia dos cristaos com estas visoes naturalistas e racionalistas da história, pode fazer-se ao nível do debate das ideias, mas sobretudo na coerencia dos cristaos com Jesus Cristo em Quem acreditam e com a Eucaristia que celebram. Só esse compromisso real na vida concreta, é verdadeiramente fecundo na transformaçao da história. Nao está garantido que todos os católicos transponham para a vida e deem densidade histórica a fé que celebram. A tentaçao de reagir no mundo com critérios mundanos e reservar a dimensao religiosa para uma esfera íntima e interior, é grande e expressao importante de infidelidade. Separar a fé da vida concreta nao é bom, nem para a fé, nem para a vida, pois é exactamente a Vida verdadeira que celebram na Ceia do Senhor.

Esta perspectiva naturalista da história, de tendencia racionalista e naturalista, convergiu na visao laicista da sociedade, que relega a fé para a esfera da privacidade individual, negando-lhe qualquer influencia na inspiraçao ética da história. Esta visao do mundo e do homem exprimiu-se, ao nível do pensamento, em correntes filosóficas, foi protagonizada socialmente por organizaçoes, e dilui-se, hoje, na concepçao individualista da verdade e da liberdade. O mistério da Páscoa, celebrado na Eucaristia, poe o cristao continuamente em confronto com o carácter inelutável da Senhoria de Cristo ressuscitado como centro da história humana.

A maçonaria e a definiçao do sentido da História

4. Entre as organizaçoes que protagonizaram esta visao imanente e laicista da história, avulta a importância da Maçonaria que, a partir de meados do século XVII, fez sentir a sua influencia em todas as grandes correntes de pensamento e nas principais alteraçoes sócio-políticas. Nao a referiria explicitamente, se um recente acontecimento nao a tivesse trazido para as primeiras páginas das notícias e tivesse criado, em muitos católicos, interrogaçoes e perplexidade. De facto, as cerimónias fúnebres de uma importante personalidade do Estado e membro destacado da Maçonaria, realizadas nos espaços da Basílica da Estrela, foram ocasiao dessa confusao, nao tanto por o "depósito" do defunto se ter feito numa das capelas mortuárias da Basílica, em princípio abertas a quantos respeitosamente as procuram, mas porque o Grao-Mestre da Maçonaria, com o nosso desconhecimento, convocou para um "ritual maçónico", em honra do defunto, a realizar num espaço da Basílica. Esta iniciativa, que considero imprudente e indevida, provocou indignaçao em muitos católicos, que incessantemente tem pedido um esclarecimento da Hierarquia da Igreja.

É uma longa e atribulada história a das relaçoes da Maçonaria com a Igreja durante os últimos tres séculos, expressa em ataques, anti-clericalismo, rejeiçao da dimensao misteriosa da fé e da verdade revelada, a que a Igreja respondeu com várias condenaçoes, com penas de excomunhao para os católicos que aderissem a Maçonaria. É um processo que tem de ser situado nas grandes transformaçoes culturais e sócio-políticas desse período, em que elementos como a compreensao da natureza e legitimidade do poder político, a promoçao e defesa da liberdade individual, os processos revolucionários em cadeia e a "questao romana" que pôs fim ao poder temporal dos Papas, foram pontos quentes a alimentar um conflito. Conceitos, entao polémicos, como o da liberdade de consciencia e de tolerância, sao hoje aceites pela própria Igreja, no quadro de sociedades democráticas e pluralistas. A verdadeira reacçao a visao do mundo veiculada pela Maçonaria, tem os católicos de encontrá-la na profundidade da sua fé, sobretudo quando a celebram na Eucaristia, como inspiradora da vida e da história, fonte de sentido e fundamento de uma ordem moral. Sem essa coerencia de profundidade, cairao em rejeiçoes e anátemas, pelo menos desenquadrados da actual maneira de conceber a missao da Igreja no mundo.

5. A questao crucial, sobre a qual os católicos tem o direito de esperar uma resposta do seu Bispo, é esta: a fé católica e a visao do mundo que ela inspira, sao compatíveis com a Maçonaria e a sua visao de Deus, com o fundamento de verdade e de moralidade e o sentido da história que veicula? E a resposta é negativa. Um católico, consciente da sua fé e que celebra a Eucaristia nao pode ser maçao. E se o for convictamente, nao pode celebrar a Eucaristia. E a incompatibilidade reside nas visoes inconciliáveis do sentido do homem e da história.

A Maçonaria sempre afirmou, e continua a afirmar, a prioridade absoluta da razao natural como fundamento da verdade, da moralidade e da própria crença em Deus. A Maçonaria nao é um ateísmo, pois admite um "deus da razao". Exclui qualquer revelaçao sobrenatural, fonte de verdades superiores ao homem, porque tem a sua fonte em Deus, nao aceitando a objectividade da verdade que a revelaçao nos comunica, caindo na relatividade da verdade a que cada razao individual pode chegar, fundamentando aí o seu conceito de tolerância. A Igreja também aceita a tolerância, mas em relaçao as pessoas e nao em relaçao a objectividade da verdade.

Esta atitude perante Deus e perante a verdade gera uma "sabedoria" global, ou seja, uma visao coerente da realidade, que é incompatível com a visao do homem e da sociedade que brotam da fé crista, que supoe a inter-acçao de Deus e do homem, no diálogo fecundo e apaixonante da natureza e da graça. A Igreja tem o dever de orientar os católicos e é a eles que digo que a nossa fé e o sentido da vida que ela inspira é incompatível com o quadro gnóstico de sentido veiculado pela Maçonaria.

6. Haverá, ainda hoje, uma luta entre a Maçonaria e a Igreja? Nao nos termos em que se pôs no passado, embora nao devamos ser ingénuos: a Maçonaria, sobretudo em algumas das suas "obediencias", lutará sempre contra valores inspiradores da sociedade que tenham a sua origem na dimensao sobrenatural da nossa fé. Sempre que isso acontecer, demos testemunho da esperança que está em nós (1Pet. 3,15). A expressao de uma visao laicista da sociedade assenta também sobre a falta de coerencia dos cristaos com as implicaçoes sociais da fé que professam e da Eucaristia que celebram.

Na Eucaristia descobre-se que só o amor transformará a História

7. Esta é a novidade decisiva que define o sentido novo da construçao da História: em cada Eucaristia, através do Espírito Santo, que é o Amor divino, nós mergulhamos na mais radical experiencia de amor que aconteceu desde a criaçao do mundo. A partir dela, nós mergulhamos na realidade do mundo, dinamizados por esta certeza: só o amor transformará positivamente a História. Escutemos o Santo Padre: "A Eucaristia nao é expressao de comunhao apenas na vida da Igreja; é também projecto de solidariedade em prol da humanidade inteira [...] O cristao, que participa na Eucaristia, dela aprende a tornar-se promotor de comunhao, de paz, de solidariedade, em todas as circunstâncias da vida. A imagem lacerada do nosso mundo, que começou o novo milénio com o espectro do terrorismo e a tragédia da guerra, desafia ainda mais fortemente os cristaos a viverem a Eucaristia como uma grande escola de paz, onde se formem homens e mulheres que, a vários níveis de responsabilidade na vida social, cultural, política, se fazem tecedores de diálogo e de comunhao" .

O Santo Padre realça esta relaçao que há entre a celebraçao e a revoluçao do amor, sobretudo no compromisso com os mais pobres. Escutemo-lo ainda: "Há ainda um ponto para o qual queria chamar a atençao, porque sobre ele se joga, em medida notável, a autenticidade da participaçao na Eucaristia celebrada na comunidade: é o impulso que esta aí recebe para um compromisso real na edificaçao duma sociedade mais equitativa e fraterna. Na Eucaristia, o nosso Deus manifestou a forma extrema do amor, invertendo todos os critérios de domínio que muitas vezes regem as relaçoes humanas e afirmando de modo radical o critério do serviço: «Se alguém quiser ser o primeiro, há-de ser o último de todos e o servo de todos» (Mc. 9,35). Nao é por acaso que, no Evangelho de Joao, se encontra, nao a narraçao da instituiçao eucarística, mas a do «lava-pés» (Jo. 13,1-20): inclinando-se para lavar os pés dos seus discípulos, Jesus explica de forma inequívoca o sentido da Eucaristia. Sao Paulo, por sua vez, reafirma vigorosamente que nao é lícita uma celebraçao eucarística onde nao resplandeça a caridade testemunhada pela partilha concreta com os mais pobres (1Cor. 11,17-22.27-34).

Por que nao fazer entao deste Ano da Eucaristia um período em que as comunidades diocesanas e paroquiais se comprometam de modo especial a ir, com operosidade fraterna, ao encontro de alguma das muitas pobrezas do nosso mundo? Penso no drama da fome que atormenta centenas de milhoes de seres humanos, penso nas doenças que flagelam os países em vias de desenvolvimento, na solidao dos idosos, nas dificuldades dos desempregados, nas desgraças dos imigrantes. Trata-se de males que afligem, embora em medida diversa, também as regioes mais opulentas. Nao podemos iludir-nos: pelo amor mútuo e, em particular, pela solicitude por quem passa necessidade, seremos reconhecidos como verdadeiros discípulos de Cristo (Jo. 13,35; Mt. 25,31-46). Com base neste critério, será comprovada a autenticidade das nossas celebraçoes eucarísticas" .

8. Sao muitos os pedidos de socorro e de ajuda fraterna que sao dirigidos a Igreja de Lisboa. Participámos, recentemente, na grande campanha de solidariedade em favor dos países do Indico, devastados pela tragédia do sismo e do "maremoto". Isso nao diminuirá, assim o espero, a generosidade dos fiéis, expressa na já tradicional "Renúncia Quaresmal". Tendo em conta os muitos pedidos que nos chegam, proponho que a nossa "renúncia" se destine, este ano, a constituir um "Fundo Diocesano de Ajuda Inter-Eclesial", que poderá continuar a ser alimentado por outros donativos, e onde encontraremos maneira de ir respondendo a esses pedidos de auxílio. Aperfeiçoaremos, assim, a nossa capacidade de ajuda fraterna.

Que a Eucaristia seja nosso alimento e nossa força nesta caminhada para a Páscoa. Aí aprenderemos a compreender os caminhos por onde o Espírito nos conduz, na edificaçao de uma humanidade renovada pelo amor.

Lisboa, 22 de Janeiro de 2005, Solenidade de Sao Vicente, Diácono e Mártir, Padroeiro Principal do Patriarcado de Lisboa